terça-feira, 15 de maio de 2018

ÁUREOS CONTRATEMPOS

MANOEL HERCULANO 

Sem querer desmerecer
mas aquele 13 de maio foi apenas um ensaio  
para o que de fato deveria ser
Diante da urgência de justiça e reparo
por toda violência
tanto desamparo
Embora, certamente, naquele tempo tenha valido 
para aquele destino tão desvalido
E hoje também tem seu valor
para quem amou, para quem ama
a princesa e Luiz Gama

Após corajosas rebeliões, fugas e lutas         
por liberdade e dignidade absolutas 
Após todas as revoltas e levantes anteriores
nos grandes centros dos interiores
A gente merecia se libertar dos assombros
das perseguições aos Quilombos
Merecia o direito de viver sem aquele sofrimento
negro não nasce para se submeter
a nenhum falso poder ou falsos superiores
Negro tem alma e sentimento
os negros não são inferiores

E apesar da lei áurea esperançar
o sonho mal começou a dançar
outros desafios, mais uma bordoada
No momento seguinte, pedinte
a gente livremente atordoada
Com liberdade pela metade
outra metade equivocada
Uma felicidade tão retardatária
que toda ancestralidade precisou ser convocada
como agora, nas marchas até a Candelária

E mesmo assim, ainda hoje
os negros carregam bem vivos ainda
aqueles mais de trezentos anos de dolorosos danos

este mais de um século cheio de enganos
Os cinco milhões daquela crucial trajetória
que cruelmente entrou para a história
e igualmente não sai da memória
Porque nos jornais, redes sociais e tablóides
ecoam pelo mundo gritos de Genivaldos e Floyds
Quem vai expiar? Precisamos respirar

Aqui jaz o destino de um caminho pra lá de longe
desde mil oitocentos e onze
sem medalha de ouro nem bronze
Ao dominador só o lucro despertava interesse
e a quem sobrevivesse àquele martírio tão longo
eis aqui os restos mortais no Cais do Valongo

Vai, vai arrastar correntes
vamos, mostra logo esses dentes
e vai fazer frente, só não te atreve ir em frente
teus direitos múltiplos serão os últimos

Oh, indigno senhor, do coração de engenho
o amor que eu tinha por meus irmãos ainda tenho
É muito suor, muito sangue, muita dor
e somente por ter nascido de outra cor?
Mas, e o sorriso, o olhar, não contam?

Sim, eram contados
constatados como animais
sem considerar os anseios, os ancestrais
nenhum deles, nem os meus, nem Deus

Adeus, minha grandiosa Pequena África
e não é apenas pela distância geográfica
Aliás, o que fazer com as sequelas daquelas práticas
e com quem ainda hoje pratica, critica, discrimina
mata sonho, esperança, segue ultrapassada disciplina
apaga o brilho que sobreviveu no olhar do menino
esmaga qualquer possibilidade de voo da menina

Tal qual a ganância do estrategista que traficava
a arrogância do escravagista que lá ficava
se achando o dono, digno do trono
de um tal poder pelos descasos humanos
e do lucro com os casos desumanos 

Falo dessa desigualdade gritante         
que alimenta a miséria, ostenta, oprime
Com baixa humanidade fica-se mais distante 
marginalizar também deveria ser crime
A desigualdade normal é normal
mas tanta, que espanta, espanca, faz mal
Que faz esquecer de onde veio
e até numa pandemia
ai, que agonia, que feio

Fala, escreve, posta citações:
a felicidade está na simplicidade
Mas aposta em outras opções:
o restaurante, o celular, o carro, a mansão
tudo tem que ser muito e mais caro
e assim, ser coerente tá cada vez mais raro
Em resumo, urge o que há de mais urgente
o consumo engole gente
Luxo, requinte, tem mesmo a ver com felicidade?
faça um print, eu não vejo necessidade
Conforto é bom, e não afronta, geralmente
mas esse jeito torto
de usufruir e exibir a conta, realmente...

Já o abismo milionário entre salários exorbitantes                   
corrupção galopante e o salário mínimo
de certa forma também é uma forma de extermínio
Igual a tudo que nos aterra nessa barbárie  
em cada esquina, esquema, hectare

O que te cabe nesse latifúndio, nessa guerra
não cabe mais nem no gerúndio
ninguém te passou a escritura da terra
Penso na imensidão deste país continental
sem espaço para minha casinha branca com quintal
E no sonho avassalador que consome
o trabalhador no meio da plantação passando fome
Tanto alimento produzido, e exportado
e o povo reduzido a pobre coitado

Para haver descontração no recreio
só com descentralização, divisão meio a meio
cultura antes, depois, durante a merenda
E sobre nossas riquezas naturais
do Nordeste às Minas Gerais
nada menos que justa distribuição de renda
No testamento terá que deixar tudo fora da cova
até este teu pensamento colonial
E ainda partirá sem direito a vida nova
se duvidar, sem um mísero cerimonial
É preciso disponibilidade
é decisivo a decolonialidade

Eu não aceito, bato no peito, cismo
não tem espaço na minha poesia
pra tanta descortesia, tanto racismo
Já que uma vez cortados os cordões
cortavam também os pulsos
os impulsos dos corações
que sangravam pelos poros nos porões

Mas, nas escavações de qualquer identidade
a história desenha para algum desavisado
E pela memória, por minha autenticidade  
me recuso a continuar escravizado
Mantenho viva a abolição
vivo autenticamente em ebulição
Firme, com a cabeça erguida 
para que nenhuma luta tenha sido perdida
nenhuma vida tenha sido em vão
Eu, voando com os poemas, os pássaros
eles, ultrapassados, passarão 

Por isso venho a público, subirei ao púlpito
denunciarei todo e qualquer tenebroso vulto
Devolverei cada insulto, ávido, aviltante
que fez nascer no poema sentimento revoltante
Quanto ao perverso, ele que vá para senzala
porque aqui tem verso, aqui agora tem fala

E nem vem com ar de superioridade nos dar preço
o negro é capaz, tem valor e sabedoria
Vai em paz, senão, dos bons modos eu esqueço
e te mando, educadamente, à mercadoria
Com poesia franca para o teu preconceito
pois sou Asa branca, sou mais, sou Assum preto

Tenho registros, por isso insisto
porque o negro nasce e não é avisado
ao entrar no recinto pode até não ser visto
mas eu sinto, será sempre visado
Ao nascer, é tanto o que a vida propicia
até morrer, menos ser morto por asfixia
Chega! Xô, todo esse mal absurdo, abissal
hoje o tambor não é surdo
o som é outro na Pedra do Sal

Porque muito mais gente se importa
e quebra a corrente desse porto sem porta

Então, como direito não se discute
o racista que lute
Quero que todo e qualquer ódio negreiro
vá se estatelar em outro estaleiro
Darei nome aos bois, às vacas, às raposas
em meu nome e em nome de vós que sois
que sois mãe e pai, filhos, esposas
Desde os áureos contratempos da Lei áurea
das aulas simuladas, dissimuladas, sem treta
direi outra vez, com mais altivez: 
sou da nação negra
da colorida cor preta


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*****Enfim, este poema, que parecia resistir... Pode ser 
que ainda troque alguma palavra ou mesmo o título, mas
aqui está. Era pra ter postado anteontem, dia 13, não
ficou pronto, e nem sei se está... Bem, são 15:30h do
dia 15 de maio/2018.
*Obs: Há quase um ano comecei a pensar e escrever
após visita ao Cais do Valongo.
*Obs 2: E quatro anos depois de postá-lo aqui, decidi publicá-lo
em livro e, hoje, 29 de junho de 2022, dia que completo 15 anos de 
poesia, pela enésima vez, acho que terminei revisão. E troquei
palavras, versos e até o título de PORTO SEM PORTA para ÁUREOS
CONTRATEMPOS. Na verdade, para desapegar de vez, quero 
enviá-lo para Maria Eugênia, pois será lido no Grupo de Leitura
Vira-Luas, pela primeira vez. E pela primeira vez faço isso. Que medo!
Bem, o reescrevi, e ficou enorme, porque os últimos acontecimentos...
Infelizmente o racismo, mesmo sendo crime... A pandemia não fez a
ficha desses "seres" cair, nesta e em todas as outras questões. A barbárie
tem sido uma constante. Então o poema queria falar... São 23h, no RJ.